09/12/2014

O Milagre

Se vivesse no mundo antigo, talvez erguesse um totem em homenagem à mandioca. Ou, se algum talento tivesse, poderia mesmo conceber um longo poema onde destacaria a alvura e firmeza de seu corpo contrastando com sua pele rugosa. Sim, compreendo que tudo isso pode parecer estranho. Nos dias de hoje, no entanto, melhor nem pensar em tótens e poemas. Já há iniciativas estranhas demais em nosso meio. Seria mais uma que se perderia no meio de tanta informação. Mas, ao menos explico: a mandioca teve papel importante na minha formação.
Nos primeiros anos de vida, então, nem se fala. Posso dizer mesmo que se não fosse a mandioca, mais especificamente a sua farinha, aliada à inventividade de minha mãe eu não estaria aqui escrevendo este texto estranho.
Ocorre que, naquela época, a situação era muito ruim. Vivíamos a ditadura. Era proibido falar que estava ruim. Mas, estava. Minha família vivia as agruras dos sem-passado e dos sem-futuro. Fazíamos parte do contingente que não decidia, que vivia sua vidinha sem se meter nas decisões dos grandes. Meu pai e minha mãe eram brizolistas. Viviam em silêncio a saudade do caudilho exilado no Uruguai. Sonhavam que, com sua volta, o país melhoraria e os milicos seriam obrigados a ensacar suas baionetas. E a vida seria diferente para os pobres.
Apesar de hoje saber que não existem milagres, que tudo o que se diz de fantástico não passa da conjunção de fatores presentes nas leis naturais, ainda me surpreende a capacidade de improvisação que teve minha mãe para manter aquelas bocas. E, chego a acreditar mesmo que ela tinha poderes sobrenaturais.
Um dos seus milagres que se repetia diversas vezes durante aqueles longos meses de carência era a multiplicação dos peixes. Eis que uma minúscula latinha de sardinha Coqueiro ou Gomes da Costa era dividida em quatro ou cinco pratos sobre o arroz. O azeite era jogado sobre tudo aquilo dando um sabor extraordinário. O segredo, porém, vinha logo depois. Para aumentar um pouco o volume, algumas colheradas de farinha de mandioca garantiam que não faltaria alimento para todos.
Naqueles tempos de racionamento, a farinha de mandioca era pau prá toda obra. Houve dias em que faltava tudo. Menos farinha, café e açúcar. Dizia a mãe que os escravos quando nada tinham para comer se deliciavam com moló. E era o que fazíamos, diante daquele argumento invencível. Jogávamos umas duas colheres grandes de farinha no nosso café bem adocicado. O gosto não era dos melhores. Mas, dormíamos com as barrigas cheias. Além disso, experimentávamos certo orgulho em provar uma receita que manteve homens honrados, cansados e sofridos em pé.
Contrariando o sonho de meus pais, Brizola voltou ao Brasil nos anos 80. encontrou um país mudado. Seus longos discursos e suas certezas na valorização da educação não foram suficientes para vencer a máquina montada pela Família Marinho, que preferia entregar o país a um certo Caçador de Marajás. O Caudilho gaúcho jamais atingiu sua meta de governar o país.
Os dias passaram e estamos aqui vivos. Quando lembro dos das agruras que ficaram para trás não deixo de experimentar um pouquinho da ternura que minha mãe mantinha sempre, independentemente da ocasião. Sua doçura e dedicação convenciam de tal forma aliviando nosso sentimento de ansiedade e de descrença no futuro. Suas palavras e ações nos davam a segurança de que poderíamos ser felizes mesmo que em nossa casa não restasse muito mais do que uma boa dose de farinha de mandioca, arroz e uma latinha de sardinha. Ou um café bem adocicado e algumas colheres de farinha para, num ato quase litúrgico, homenagear todos os outros que sofreram a violência dos desgraçados tempos de falta de liberdade.

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